O
que ensinar em História
Passado
e presente, juntos, para ensinar
Os
estudantes só aprendem a disciplina quando relacionam fatos, confrontam pontos
de vista e consultam diversas fontes de pesquisa.
Em todos os
tempos, o ensino de História foi permeado por escolhas políticas. No Brasil, após
a proclamação da República, em 1889, a construção da identidade do país
tornou-se prioridade. As elites tinham de garantir a existência de um
estado-nação, escolhendo para ser ensinado aos alunos conteúdos que exaltavam
grandes "heróis" nacionais e feitos políticos gloriosos. Desde então,
poucas mudanças aconteceram em termos do quê e como ensinar nessa área, e todas
foram influenciadas, sobretudo, pelas visões de quem estava no poder. Para
desenvolver a postura crítica da turma e dar aulas consistentes, é fundamental
que o professor entenda esse processo. História é uma disciplina passível de
múltiplas abordagens - que até há pouco tempo não estavam em sala de aula, mas
que hoje devem ser vistas com destaque. Por isso, tornou-se premente o trabalho
com diversas fontes e o relacionamento do passado com o presente para que se
entenda que contra fatos há, sim, argumentos. Tudo depende do olhar que se
lança sobre eles.
Quando os
jesuítas chegaram ao Brasil em 1549 e fundaram a primeira escola, só usavam os
textos históricos como suporte para ensinar a ler e escrever e seus conteúdos
sequer eram discutidos. Foi apenas em 1837 que o Colégio Dom Pedro II, no Rio
de Janeiro, instituiu a História como disciplina obrigatória e autônoma (leia a
linha do tempo "O ensino de
História no Brasil"). O foco era a formação da civilização ocidental e o
estudo sobre o Brasil era apenas um de seus apêndices. Vale lembrar que a
história bíblica também era um conteúdo a ser abordado - só sendo retirada do
currículo em 1870, com a diminuição do poder da Igreja sobre o Estado.
A maioria
dos professores do Colégio Pedro II era formada por membros do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838 e adepto de uma visão
político-romantizada do processo de construção do Brasil. Além de pautar o
ensino pela questão da identidade nacional de maneira ufanista, eles
acreditavam que o ensino de História tinha o papel de formar moral e
civicamente - um dos objetivos da disciplina na época e que está ultrapassado
teoricamente.
A metodologia
utilizada era a tradicional (conheça outros métodos no quadro da página ao
lado), que tinha como princípio levar os alunos a saber datas e fatos na ponta
da língua. Também houve a influência do historiador prussiano Leopold von Ranke
(1795-1886), que via a história como uma sucessão de fatos que não aceitavam
interpretação. Segundo ele, pesquisadores e educadores deveriam se manter
neutros e se ater a passar os conhecimentos sem discuti-los, usando para isso a
exposição cronológica. Na hora de avaliar, provas orais e escritas eram
inspiradas nos livros de catequese - com perguntas objetivas e respostas
diretas.
Racionalidade
x patriotismo
Essa
postura em sala de aula só seria questionada no início do século 20, quando
operários anarquistas de São Paulo e Porto Alegre, que lutavam por melhores
condições de trabalho, criaram escolas inspiradas na pedagogia do espanhol
Francisco Ferrer y Guardia (1849-1909). Nelas, valorizavam-se a racionalidade e
o cientificismo e não havia espaço para a exacerbação do patriotismo. A
História era explicada por meio das lutas sociais e não pela construção do
Estado. Novas fontes de aprendizagem, como visitas a museus e exposições, foram
incorporadas com o objetivo de fazer o aluno pensar e não apenas decorar o conteúdo.
Além disso, eram abordados temas como a Revolução Francesa antes do estudo
sobre a Antiguidade, quebrando assim o paradigma da linearidade. As idéias
revolucionárias, no entanto, foram pontuais e de pouca duração. As dez escolas
com esse perfil foram fechadas com a pressão do governo de Arthur Bernardes
(1875-1955), que sufocou os movimentos trabalhistas.
O cenário
ficou ainda mais complicado quando, em 1930, Getúlio Vargas, ferrenho
nacionalista, subiu ao poder, ficando nele quase ininterruptamente até 1954.
Nesse meio tempo, surgiram os primeiros cursos superiores de História, que
nasciam compactuando com a visão tradicionalista. Os estudos de Jean Piaget
(1896-1980) e Lev Vygotstky (1896-1934), contudo, começaram a ser divulgados,
trazendo teorias que influenciariam a Educação no geral, ao considerar as
hipóteses prévias das crianças sobre os temas abordados na escola. Sendo assim,
as aulas puramente expositivas não funcionariam mais e a idéia de que aprender
é decorar começou a mostrar sinais de fragilidade.
A ditadura
militar, nos anos 1960, faria com que as propostas mais avançadas demorassem
para germinar. Em 1971, as autoridades substituíram História e Geografia por
Estudos Sociais nas séries iniciais. Havia o medo de que o potencial político e
crítico que o conhecimento mais profundo daquelas áreas poderia trazer pudesse
gerar reações revolucionárias. Segundo Circe Maria Fernandes Bittencourt,
professora de pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo, a fusão empobreceu os conteúdos de ambas as disciplinas, pois a ênfase
agora estava no civismo.
As mudanças
mais significativas, entretanto, começaram a se desenhar com a influência da
Psicologia cognitiva, da Antropologia e da Sociologia. Essas duas últimas
trouxeram, respectivamente, novos conteúdos e outras visões de fatos históricos
- o que influenciaria a metodologia moderna de ensinar História. Além de
ampliar o espectro de temas escolares - introduzindo, por exemplo,
manifestações culturais locais -- e de procurar diferentes versões, a
metodologia moderna também se caracteriza pela ênfase na relação entre passado
e presente, pelo rompimento com a linearidade e pela consulta a fontes de
diversas naturezas. A partir dos anos 1980, cada vez mais professores foram
tomando contato com essa nova forma de trabalhar (leia a entrevista à
esquerda).
Hoje não se
concebe o estudo histórico sem que o professor apresente diferentes abordagens
do mesmo tema, fato ou conceito - iniciativa importante para que o aluno
perceba que, dependendo da visão e da intenção de quem conta a história, tudo
muda. Basta pensar no exemplo de como entender o processo de formação de um
bairro: pode-se vê-lo sob a ótica dos trabalhadores da região e das relações
estabelecidas pelos modos de produção, dos que estiveram no poder, dos grupos
minoritários que habitam o local ou das manifestações culturais, entre outras
possibilidades. Durante as aulas, é impossível apresentar todas as maneiras de
ver a história, mas é fundamental mostrar que ela não é constituída de uma
única vertente (e que, até mesmo dentro de uma delas, pode haver várias
interpretações). O professor deve favorecer o acesso a documentos oficiais,
reportagens de jornais e revistas e a outras fontes. O contato com essa
diversidade leva o estudante a ter uma visão ampla e integrada da história.
Além de textos, é recomendável que a turma consulte sites confiáveis, assista a
filmes e documentários, visite museus e entreviste os atores que vivenciaram os
acontecimentos estudados. Tudo com planejamento e registro para que seja
possível fazer uma avaliação minuciosa do processo.
Ontem
e hoje
Estabalecer
a correspondência entre passado e presente passou a ser um dos objetivos da
disciplina (conheça algumas das expectativas de aprendizagem no quadro da página
ao lado) nos anos 1990, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs). Daniel Helene, selecionador do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10,
diz que relacionar os fatos ajuda na compreensão de que a História é um
processo. Existe escravidão hoje em dia? Como ela era antigamente? "Isso
deve ser feito de modo que o aluno entenda as transformações no decorrer do
tempo. Essa também é uma forma de aproximar o conteúdo à vida do aluno - o que
era impossível quando o conteúdo era transmitido cronologicamente. "Esse
procedimento passava a idéia de que a história é uma evolução, o que não é
verdade. Hoje o professor pode explorar as diferentes formas de lidar com a
temporalidade e, assim, estimular a reflexão. O resultado é que, em vez de
decorar informações sem sentido, os jovens são estimulados a analisar o que
aprendem e a memorizar conscientemente", afirma o consultor.
Desde a
publicação dos PCNs, temas como ética e pluralidade cultural passaram a permear
o ensino da disciplina, indicando mais uma mudança: se nos tempos idos o
objetivo era fomentar a idéia de identidade nacional, ancorada na deturpação e
romantização de acontecimentos, hoje o intuito é explorar as diferentes
identidades que existem dentro de uma nação, tornando os alunos sabedores da
diversidade cultural de sua época. Um desafio e tanto para os professores.
Mitos
pedagógicos
As
metodologias da disciplina levaram à construção de alguns mitos. São eles:
-
História é decoreba
A concepção
de Educação que está por trás disso é a de que a aprendizagem se dá pela
repetição da fala do professor ou do conteúdo do material didático. Grande
equívoco.
-
Não é preciso memorizar
Em reação
contrária à idéia anterior, alguns educadores defenderam que não era preciso
decorar nada. Porém saber datas e nomes ajuda a relacionar os fatos. Memorizar
significativamente é diferente de decoreba.
-
Uma lição de moral
A História
nasce como disciplina escolar no Brasil em um contexto de criação da identidade
nacional. Daí a idéia de que ela serviria para incutir princípios e valores
nacionalistas.
-
Um fato depois do outro
Não se
sustenta a idéia de que para entender um período é preciso estudar o que veio
antes dele. O aluno aprende com base em questões do presente, relacionando ao
passado o que lhe é mais próximo.
-
Existe apenas uma verdade
De
inspiração positivista, esse mito parte da idéia de que os documentos oficiais
e os fatos políticos são os fiéis guardadores da realidade. A idéia foi sendo
derrubada ao longo do século 20, quando os historiadores, recorrendo a outras
fontes documentais, descobriram diferentes interpretações sobre períodos e
fatos.
Linha
do tempo do ensino de História no Brasil
1549
Os jesuítas
chegam ao Brasil e fundam as primeiras escolas elementares brasileiras. Os
textos históricos bíblicos eram usados apenas com o intuito de ensinar a ler e
escrever.
1837
O Colégio
Pedro II, no Rio de Janeiro, inclui a disciplina como obrigatória. Nesse ano
também é fundado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que defende uma
visão nacionalista.
1870
Com a
diminuição da influência política da Igreja sobre as questões de Estado, os
temas que têm como base as idéias bíblicas são abolidos do currículo.
1920
Escolas
abertas por operários anarquistas tentam implantar a ótica das lutas sociais
para entender a história. Mas elas são reprimidas e fechadas durante o governo
de Arthur Bernardes, alguns anos depois.
1934
É criado o
primeiro curso superior de História, na USP. A academia nasce com uma visão
tradicionalista, reforçando a sucessão de fatos como a linha mestra.
1957
Delgado
Carvalho publica a obra Introdução Metodológica aos Estudos Sociais, que serve
de base para o processo de esvaziamento da História como disciplina autônoma.
1971
A História
e a Geografia deixam de existir separadamente. No lugar delas é criada a
disciplina de Estudos Sociais (empobrecendo os conteúdos escolares) e, ao mesmo
tempo, a licenciatura na área.
1976
O
Ministério da Educação determina que, para dar aulas de Estudos Sociais, os
professores precisam ser formados na área, fechando-se assim as portas para os
graduados em História.
1986
A
Secretaria de Educação do Município de São Paulo propõe o ensino por eixos
temáticos. A proposta não é efetivada, mas vira uma referência na elaboração
dos PCNs, anos depois.
1997
Abolição de
Estudos Sociais dos currículos escolares. História e Geografia voltam a
aparecer separadamente. Especialistas começam a pensar novamente sobre as
atuais especificidades de cada uma das disciplinas.
1998
Com a
publicação dos PCNs, são definidos os objetivos da área. Entre eles está o de
formar indivíduos de modo que eles se sintam parte da construção do processo
histórico.
2003
O Conselho
Nacional da Educação determina que a história e a cultura afro-brasileira sejam
abordadas em todas as escolas, o que mostra uma iniciativa oficial para
desvincular o ensino da visão eurocêntrica.
Metodologias
mais comuns no ensino de História
As maneiras
de ensinar História que já estiveram ou ainda estão presentes na sala de aula
são:
Tradicional
Inspirada
no método francês do século 19.
FOCO Memorizar os
fatos em ordem cronológica, tendo como referência a construção dos
estados-nação e a importância dos valores morais e cívicos.
ESTRATÉGIAS
DE ENSINO Aulas expositivas, apoio de livros didáticos e
estímulo à decoreba de datas, fatos e nomes.
Anarquista
Surgiu
depois da Revolução Francesa e da Comuna de Paris, na Europa, e da proclamação
da República, no Brasil. Foi introduzida em algumas escolas brasileiras nos
anos 1920.
FOCO Conhecer
o movimento histórico pelas lutas sociais, desconstruindo a visão política e
romantizada.
ESTRATÉGIAS
DE ENSINO Visitas a museus para fazer pesquisas e estimular
a reflexão crítica.
Moderna
Baseada nas
teorias cognitivas de Jean Piaget e Lev Vygotsky e na idéia de que se deve
buscar abordagens diversas - sociais, econômicas, políticas e culturais.
FOCO Ensinar os
alunos a ter uma visão crítica e a percepção de que não existe uma história
verdadeira e única.
ESTRATÉGIAS
DE ENSINO Proposição de eixos temáticos, consultas a
diversas fontes e perspectivas para estabelecer a relação entre o passado e o
presente.
As
orientações curriculares da prefeitura de São Paulo recomendam que, ao fim do
5º ano, os alunos sejam capazes de:
-
Relacionar espaço e tempo, construindo a noção cronológica e de periodicidade
dos fatos.
-
Identificar os sujeitos envolvidos nos diferentes tipos de acontecimentos
(familiares, escolares e sociais).
- Perceber
mudanças e permanências em hábitos culturais de povos e grupos no decorrer de
determinado tempo.
-
Estabelecer relações entre hábitos culturais tradicionais e contemporâneos.
-
Reconhecer elementos dos modos de vida urbana e rural.
- Fazer
relações entre atividades locais e acontecimentos históricos da cidade com a
preservação da memória de indivíduos, grupos e classes, desde o Brasil Colônia
até o presente.
- Apontar
marcas do passado na paisagem da cidade, suas procedências e seus espaços de
memórias (museus, exposições...).
-
Distinguir o trabalho escravo do livre, expondo as diferentes relações entre os
moradores da cidade na atualidade e em outras épocas.
- Conhecer
e utilizar marcadores de tempo de média e longa duração (décadas e séculos) e
situar a história do aluno no tempo e no espaço.
-
Confrontar informações colhidas em registros diferentes, referentes aos mesmos
acontecimentos históricos.
O documento
prevê ainda que os alunos, ao fim do 9º ano, saibam também:
-
Identificar transformações temporais quanto às formas diferenciadas de ocupação
do espaço e às mudanças na paisagem pelas populações, desde a Antiguidade até o
período contemporâneo.
- Apontar
mudanças na organização social quanto às formas de produção de alimentos, de
comércio e na utilização de recursos naturais em espaços diferenciados.
-
Reconhecer a importância do patrimônio étnico-cultural e artístico para a
preservação e construção de memórias e identidades.
- Coletar
informações de fontes históricas, como textos, imagens, objetos, mapas urbanos
e edificações.
- Localizar
no tempo e no espaço as sociedades estudadas.
- Valorizar
atitudes de respeito à diversidade étnica e cultural.
- Dar
importância aos intercâmbios entre as diferentes sociedades e às negociações na
mediação de conflitos.
- Conhecer
as mudanças na organização dos espaços e os conflitos sociais nas cidades desde
o período colonial brasileiro até a atualidade.
- Dar
importância à preservação do patrimônio histórico urbano.
-
Identificar transformações técnicas na produção e nas relações de trabalho
vindas com a Revolução Industrial.
- Comparar
a organização social e o espaço urbano das primeiras cidades industriais com o
município em que se vive, inserindo-o na organização política e territorial
brasileira.
- Conhecer
o processo de organização das nações européias, de independência política do
Brasil e de construção do Estado nacional brasileiro.
-
Estabelecer uma relação entre política e cultura, expressa em diferentes
manifestações religiosas, artísticas e educacionais.
-
Identificar as lutas políticas e sociais da população do município e os espaços
de participação pública atuais.
- Conhecer
a organização da república brasileira.
-
Identificar os poderes econômicos e institucionais atuais no município.
-
Reconhecer a importância dos movimentos sociais pela igualdade de direitos.
Fonte:
MARTINS, Ana Rita. O que ensinar em História. Disponível em:http://revistaescola.abril.com.br/formacao/passado-presente-juntos-ensinar-428266.shtml?page=6. Acesso em: 01 de junho de 2015.

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